quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Uma realidade paralela

(Para Gorete Carvalho, minha professora do primário.)


A escolha de Paulo (ou da pessoa que se achava que era Paulo) por uma carreira intelectual teve as mais diferentes explicações, mas entre os cálculos que autoavaliavam esta escolha, nenhum mediu o quanto de transtorno pessoal e fora da família ele geraria. Apesar dos incidentes, sua decisão o fazia se sentir um rei.

Ele era sujeito tipo comum com antipatia pelas massas e algumas ações excêntricas, que, no fundo, não o afastavam da humanidade. Na perdida Rio Perene, cidadezinha dessas que subvertem a noção de tempo e de progresso, se ele tivesse um desafeto declarado era muito. Tinha — acreditava ter — boa relação com todo mundo. Vivia basicamente, porém, de “Oi, como vai?” e de lhe devolverem secamente a pergunta com um “Diga aí”.

Apesar de um defeito pequeno ou outro em sua conduta, nunca prejudicou o bastante alguém, nunca levou multa no trânsito e sequer já deu trabalho à polícia ou ao guarda de rua. Mesmo assim, ele era um dos temas preferidos dos colegas de escola, das meninas e das moças mais velhas. Beatas e mexeriqueiras comentaram uma vez sobre Paulo, contudo, o consideram coisa menor. Era exemplo de comportamento sempre apontado nas casas. No fundo, todos o detestavam.

Só que de tanto ser alvo de chacota entre os de sua geração, aquela chacota arrasadora e sutil, jamais escancarada, ele supôs que era um doente de fato. Um doente mental.

Atleta sexual Paulo nunca foi. Um imbecil de se borrar e fugir envergonhado das mulheres — e elas dele — também não. Conversava bem, cativava quem o ouvisse. O modelo clássico de grande inteligência acompanhada de incapacidade de relacionamento não é o seu caso. Verdade que já foi, contudo, superou parte de suas limitações e em termos conseguiu conciliar-se consigo mesmo. O fardo que carrega diz respeito à visão que as pessoas tinham dele. Paulo mexia com um troço muito repugnante para quase todos os cidadãos rio-perenienses. E nisso era mais malvisto que ladrões e outros delinquentes.

O troço se chamava livro, quer dizer, ainda hoje tem este nome. E todos o viam com um certo temor. A sua própria mãe achava esta paixão desagradável e vergonhosa.

Por mais que ele protestasse, fizesse coisas naturais como fumar cigarro, ir a festas, embriagar-se, o estigma já estava marcado, grudado para sempre: Paulo é louco porque estuda seriamente, ama as letras.

Amigos com quem pudesse contar, apenas uns primos distantes, que apareciam na cidadezinha lá pelas férias. Na verdade, Paulo não tinha ninguém para dividir sofrimentos, alegrias, descobertas e segredos.

A solidão aparecia sempre forte cada vez mais. Solidão esta que presença feminina alguma dissipa, apenas alivia momentaneamente. Supunha que estava sozinho no Universo. Supôs certo. E isso fragilizou a indústria de divagações que era a sua cabeça. As coleguinhas bonitinhas acreditavam que Paulo talvez servisse quando todos os outros homens da face da Terra fossem aniquilados. Na falta do restante, só haveria ele mesmo.

Trancar-se no quarto por horas ininterruptas pensando — poderia ir ao cinema ou à biblioteca municipal, mas estas delícias nem existiam onde morava — e ler, ler e ler até que o sono o anestesiasse todo: Paulo se revesava nestas duas funções principais.

Um dia conheceu Carol, o seu correspondente perfeito. De inteligência mediana e pouco interessada em cultura, ela, por outro lado, tinha uma vontade insaciável de se envolver com homens cultos, requintados. Ao conhecer Paulo, viu nele a corporificação das suas mais exóticas fantasias. E ele relutou em aceitar a ideia — como sempre relutou em concordar que uma paixão dominasse qualquer cabeça —, mas confessou que estava encantado, enfeitiçado. Conversa vai, conversa vem, passeio no campo, carícias e... Dizer que um nasceu para o outro parece babaquice dessas que costumam falar por aí. No caso de Paulo e Carol, a realidade se rendeu e foi suplantada. A babaquice venceu...

Ninguém ainda a tinha conhecido. Paulo a guardava a sete chaves. Talvez se encontrassem no quarto dele, onde passou a viver depois que chegava da escola, pensou a mãe.

— E como era possível, se eu não via ninguém entrar com ele? — perguntou a si própria e jurou que iria prestar mais atenção no filho.

Muitos diziam que Paulo não era visto passeando pelos lugares que às vezes dizia que passava. Ele nem se deu à delicadeza de apresentá-la aos mais chegados, ou melhor, aos menos distantes.

Interessante em Paulo é que se o mundo não é como ele gosta, que se dane o mundo. Paulo tem um só dele e deste ele gosta excessivamente. Da porta da casa de sua mãe para fora ele vê uma tragédia de erros, um amontoado de monstruosidades.

Por sorte, Carol era diferente. Na realidade, a natureza da relação de Paulo ninguém tinha sacado direito. Alguns não duvidavam que ele fosse capaz de envolvimentos. A maioria achava que Paulo nunca foi um mortal como qualquer outro; era muito, muito mais esquisito.

Paulo fazia juras de amor, mas notou que estava na maior parte dos dias sozinho, triste, e se encontrava com Carol exclusivamente no quarto dele e sempre na cama deitado. Dos oito encontros que marcou para a rua, em nenhum ela foi. Foto dela, não tinha. Já descreveu sua fisionomia, e nada mais.

Certo dia Paulo cochilara vendo tevê na sala. Carol teria aparecido, só que do quarto não saiu. Daí veio o paradoxo: como ela estaria no quarto se sua mãe, que passou a tarde toda fazendo faxina lá, não viu absolutamente ninguém? E como ele estaria com ela se nem da sala saiu, além de ter ido ao banheiro?

Ao perceber que tudo não passava de uma ilusão, de um grande sonho, quer dizer, de sonhos frequentes e sequenciais, Paulo se deu conta de que divagava..., talvez algo bom. Sua identidade foi forjada por ele próprio para fugir da vida. Seu nome não era Paulo, e sim Rodolfo. Um manicômio de porte médio, cravado próximo de uma metrópole de uns 10 milhões de humanos, era onde habitava. Seus tios são viciados em drogas baratas e ele, mesmo um adulto exigente, também. A droga entra clandestinamente e ele nem sabe mais por onde andam seus tios, hoje. Seus pais morreram quando ele tinha dez anos, sua casa é esta prisão e uma das suas maiores felicidades diárias é encontrar alguém que lhe ouça e fale coisas agradáveis.

A explicação para o surgimento de uma história tão esdrúxula talvez seja porque ele morou alguns anos na distante Rio Perene (antes da desastrosa perda da família e antes da sua mudança para os infernos da cidade grande) e também por sempre ser classificado como medíocre e derrotado. Da vontade de se tornar escritor, existem apenas seu conhecimento do á-bê-cê, a prática da assinatura do nome e um domínio das quatro operações matemáticas.

Ainda que tenha demorado a perceber que tentava fugir da realidade através da criação de outra, Paulo, isto é, Rodolfo, concluiu que precisava melhorar sua capacidade imaginativa. Sem isso, o peso dos fatos lhe esmagará incondicionalmente. Afinal, seria tal autoindução o seu grande teste para virar escritor. Assim, surgira o desejo de todos os seus desejos: chegar o dia em que, envenenando em definitivo a sua consciência e sem se resolver com o presente, os seus olhos virão apenas o que ele próprio deseja ver.

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Nota de D.Z. (10-4-2004): Conto inspirado no formato do enredo dos filmes “O sexto sentido” e “Corpo fechado”, ambos do diretor M. Night Shyamalan, nos quais o epílogo dá uma reviravolta em toda a história.

Aprendendo a jogar

Não pensou em outra coisa. Sabia que aqueles trejeitos do corpo e aquele olhar às vezes vago, às vezes oblíquo, às vezes impróprio, denunciavam um dos comportamentos mais frequentes entre os adultos e que, mesmo quando adolescente, jamais suspeitou que existisse. Agora sabe.

Repugnância sentia, é verdade, mas aprendeu que somente ele, o jogo de máscaras, permitia aquela distinção tão bem delimitada por um certo Engels: uma, a civilização, e outra, a barbárie. E tia Nena, via de regra, falava um pouco para depois encher o quase monólogo de Fred com bolhas de silêncio. Não o silêncio saudável de namorados ou de velhos amigos. Os momentos de total falta de palavras entre ele e sua tia, num encontro casual dos dois e que dali nada de importante sai mesmo, pareciam reforçar o caráter artificial e falso da convivência que muito há no mundo e nos encontros dos dois.

Os olhos, ah!, os olhos... Ele aprendeu razoavelmente rápido que ocorria algo de estranho quando as pessoas evitam se olhar nos olhos. Criou até uma lei geral a fim avaliar a personalidade alheia: não merece confiança quem se esquiva de enfrentar os olhos do outro. Inclusive, sondar as intenções e o caráter das pessoas com quem conversa é a mais interessante de suas curiosidades.

Ter percebido que o tal jogo de máscaras, usado sem distinção de nacionalidade, origem, credo, cor e classe, criava um pacto de não agressão, isso ele notou. Criava uma sensação de cordialidade e tolerância. Mas as aparências são o estofo de nossa sociedade. Qualquer relação que se limite à etiqueta não passa de propaganda de classificados. Entretanto, qual convívio se sustenta na base das palavras corrosivas? Fred pensou nisso tudo e calou. Calou-se por impotência de nada poder fazer, e não por desejo de consentir.

Ele não gostava do jeito de tia Nena — no fundo, era ela que não gostava dele —, porém compreendia seu pequeno drama. Observava o quanto ela amargava sua vida ordinária, chinfrim. Ela, sem perceber, construiu para si uma densa e indestrutível atmosfera de fingimento, falsos sorrisos e recorrente amargura. Tia Nena não é mais tia Nena; é aquilo que ela acha mais socialmente adequado à mediocridade da sua vida. Amizade, quase nenhuma. Felicidade, sim, só que ficou num passado distante. Sexo, comportado ou safado, nem pensando. Tia Nena, com cerca de quarenta e sete anos, se anulou quando resolveu brincar de ser o que a hipocrisia social é. Tia Nena pensou tanto em si, procurou envolver-se com os mais próximos da forma mais fugaz possível que imbecilizou sua própria natureza. Uma natureza de mulher-fêmea, mulher bonita e esculpida pela genética para gozar a vida, gozar com um macho enlouquecido toda vez que desse vontade. Tia Nena, ao contrário, virou um traste, perdeu a condição ancestral de ser humano (a agressividade, a passionalidade, o afeto...).

Por outro lado, pensou Fred, com etiquetas sociais dá para tocar a vida; sem elas, a vida é pé de guerra. Fred repensou isso tudo de novo, calou. Lembrou-se que usou artifícios desse tipo quando não deu um murro na ex-namorada que o traiu. Evitou mandar o pai ao inferno, certa vez, ao não lhe dar grana para ir à festa com os amigos. Jamais falou a sua mãe sobre alguns pensamentos incestuosos.

Da repugnância, Fred achou que as máscaras podem ser úteis em determinadas ocasiões. Elas por si, sozinhas, não são nocivas. Não podem ser. Exigem um manuseio adequado e diferente daquele de tia Nena. Se bem que a raiva dele sobe à garganta toda vez que falsos amigos o procuram. Tapinhas nas costas e cinismo são o que lhe oferecem. Em troca de tão pouco, querem favores e facilidades mil.

Logo deu meia-noite e Fred ali, pensando sobre tudo isso e calado. E falar com quem àquela hora? Sozinho estava, sozinho ficou. Pegou um livro de Auguste Comte e começou a ler. Texto complicado é companhia agradabilíssima que ajuda a chamar o sono. Vieram os sonhos, um pesadelo bobo, e, cedo, a mão insistente do pai chamando-o para trabalhar logo, em pleno domingo. Era a arrumação do escritório que estava marcada para o dia anterior. Ele ficava no almoxarifado do prédio num turno de seis horas por dia.

Banho, café rápido, beijo na mãe, saudação a Menino, o seu gato inescrupuloso de oito anos (embora todo gato seja um mau-caráter profissional), manhã rotineira, almoço no restaurante de segunda categoria, com o pai pela bilionésima vez, tarde calma. 16h30min. Fred saiu antes, foi para casa andando. Precisava estudar para a prova de amanhã. Estudava à noite num curso supletivo. Tinha tempo escasso.

“Ó Frederik!”. Era Paloma gritando. Uma vizinha de seios pontiagudos e coxas suculentas. Queria, também pela bilionésima vez, que ele fizesse um trabalho escolar. Só lembrava o nome dele e o cumprimentava nessas horas. Ela exigiu que fosse entregue hoje à noite e deu adeus. Fred pensou em descarregar nela todas as amargas conclusões de ontem. Ficou com elas, calou-se. Não tinha forças para tanto. Nunca teve. No quarto, sentiu-se um pouco tia Nena, pensou em chorar. Engoliu.

Fez o trabalho em cinquenta minutos e entregou ao irmão da menina. Deitou-se na cama, sem sono, pensou em tia Nena de novo, viu o quanto é difícil alterar uma arquitetura de equívocos tão sedimentados em pessoas fracas como a tia e, agora, ele. Nada jantou. A fome sumiu. Cochilou um pouco e acordou assustado. Lembrou novamente e novamente da tia e, sob algum sonífero, dormiu mais. A prova fora esquecida. Na verdade, as provas e provações do cotidiano costumam ser mais importantes.

Acordou com os berros do pai e com uma certeza dos pensamentos de ontem: um novo tormento, um novo fantasma, entrou em sua vida e vai persegui-lo até não se sabe quando. Um dia pode expulsá-lo ao aprender como jogar.

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Publicado na revista “Guarulhos Mudafala”, de Guarulhos (SP), n.º 3, março-abril/2004, e no jornal "Tribuna Feirense", 14-12-2003, de Feira de Santana (BA).